Quando ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 2006, o economista Muhammad Yunus já era famoso, mundo afora, como “o banqueiro dos pobres”. Diante de plateias modestas ou sofisticadas ele pregava que “o único lugar onde pobreza deve existir é nos museus”. Ou então, “todo mundo, mesmo pobre, nasce empreendedor, mas só alguns têm chance de libertar esse potencial”.
Passadas duas décadas do século 21, Yunus mostra ter ido além do discurso. O seu Grameen Bank, em Bangladesh, andando sempre na contramão da lógica financeira tradicional – pois empresta dinheiro sem cobrar juros –, já distribuiu US$ 13 bilhões a mais de 9 milhões de pobres, dos quais 97% mulheres. “Bancos convencionais emprestam a quem já tem. Nós invertemos esse princípio: se você já tem, não emprestamos”, resume nesta entrevista a Gabriel Manzano. O que ele propõe é “redesenhar a máquina (da economia) tendo o negócio social, que não visa lucro, como parte desse redesenho”.
Hoje Yunus se diz movido pela urgência. Vê pela frente o que chama de “bomba-relógio” – um mundo de imensas desigualdades caminhando nos próximos 20 ou 30 anos para 9 bilhões de pessoas, com tecnologias eliminando empregos e recursos escasseando. Aos que acham que ele não passa de um anticapitalista disfarçado, adverte: “Ofereço soluções que não pretendem desfazer nada, apenas abrir novas possibilidades”. Sua causa não saiu de graça. Na última década, Yunus acabou se afastando do controle de Grameen Bank, por limite de idade, mas também envolvido em rusgas com outros diretores do banco e mesmo com o governo de Bangladesh.
No Brasil, onde já esteve várias vezes, ele criou em 2013 a Yunus Negócios Sociais, que tem parcerias com Ambev, Natura, Cielo, Johnson & Johnson, Caixa Econômica e outras 30 ou 40 empresas. Os projetos incluem atividades como reflorestamento, energia limpa e coleta de resíduos sólidos. Exemplo: o Instituto Muda, que tem ajudado pessoas de rua em São Paulo a coletar material reciclável. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O que o levou a abrir um escritório no Brasil? E que resultados tem tido aqui?
Nós trabalhamos pela difusão de um conceito, o do negócio social – aquele voltado para resolver um problema da sociedade, e não para distribuir dividendos a acionistas. No Brasil contactei muitos líderes interessados em problemas sociais. Com ajuda de um sócio empreendedor, o Rogério Oliveira, criamos a Yunus Negócios Sociais. Em cinco anos já apoiamos mais de 50 empreendedores através de mentorias, assessorias pro bono e apoio financeiro.
Pode citar casos concretos?
Tivemos mais de 20 grandes empresas passando por diversos programas. O case mais emblemático já desenvolvido foi o lançamento da água AMA pela AmBev, que teve 100% do lucro reinvestido em negócios sociais buscando facilitar o acesso a água no semiárido brasileiro. Além dessa iniciativa, Natura, Cielo, Johnson & Johnson, Caixa, Pernod Ricard, Randstad e Nestlé são empresas que já integram o portfólio de parceiros da Yunus.
Considera o empreendedorismo social no Brasil significativo?
Na Yunus Brasil temos contacto com muitos jovens que defendem ideias para lidar com problemas sociais. Para apoiar, lançamos o Fundo de Investimento em Negócios Sociais. O fundo não tem um foco específico: o que se busca é que os negócios sejam sólidos, financeiramente sustentáveis e voltados a temas sociais. Já investimos em áreas como reflorestamento, resíduos sólidos, educação e até falta de acesso a óculos. A Yunus tem um setor dedicado também a saúde e geração de emprego e renda.
A rigor, o que o sr. oferece é microcrédito. Há um limite para essa ajuda?
Normalmente disponibilizamos de R$ 200 mil a R$ 1,5 milhão por rodada de investimento. Uma vez que os negócios não almejam enriquecimento pessoal, podemos atingir metas concretas atendendo a pessoas em condições que possam pagar. Começamos em 1976 em Bangladesh emprestando dinheiro, sem cobrar juros, a mulheres pobres. Fomos ampliando a filosofia sem buscar qualquer lucro pessoal, voltados para pequenas e médias empresas – e o modelo foi sendo reaplicado depois entre pobres de outros países.
Fala-se muito hoje no “desenvolvimento sustentável”. Acha que essa causa tem se fortalecido no mundo?
Desenvolvimento sustentável significa, para mim, uma economia que alcance os três zeros: zero pobreza, zero desemprego e zero emissões adicionais de carbono. O conjunto de Metas Sustentáveis do Milênio colocou o fim da pobreza e a questão das mudanças climáticas como prioridades. Tenho muito orgulho em ser o embaixador oficial dessas metas. Mas para alcançá-las precisamos de novas fórmulas de ação que alterem o modo como operamos no mundo dos negócios. Qualquer negócio que não contribua para avançar rumo aos três zeros acima não é, para mim, um negócio sustentável.
Como luta por isso na prática?
Várias iniciativas que financiamos por todo o planeta, com a Yunus Social Business, buscam ampliar, por exemplo, a energia renovável, instalando em fábricas fornos que utilizam carvão vegetal. No Brasil temos também a Assobio, que replanta e preserva áreas de floresta, ensinando plantio e manejo. Uma outra empresa, o Instituto Muda, dedica-se à gestão de resíduos sólidos, gerando emprego e renda para coletores de material reciclável nas ruas das cidades. Há estimativas de que cerca de 100 mil pessoas vivam dessa forma, no Brasil, das quais 20 mil a 25 mil só em São Paulo. Ao apoiar o Instituto Muda estamos ajudando a gerar renda para populações que, sem isso, não teriam renda nenhuma.
Qual o seu balanço atual das ações do Grameen Bank?
Ele foi criado como um banco para pobres. Trabalha principalmente com mulheres, que representam 97% dos mutuários. Está longe de ser um banco convencional, que costuma emprestar dinheiro a quem já o tem. Nós invertemos esse princípio: se você já tem, não emprestamos. Além disso, o Grameen abandonou a ideia de garantias, opera com base na confiança. Foi assim que chegou a 9 milhões de mutuários, garantindo desde empréstimos hipotecários a construção de banheiros ou a educação de crianças. O nosso Social Business Venture Capital Fund tem como meta ajudar jovens desempregados a se tornarem empreendedores.
Porque a imensa maioria de ajudados é de mulheres?
Porque percebemos, nos empréstimos feitos desde os anos 80, que as mulheres quase sempre usavam o dinheiro para ajudar a família. Quando elas tinham rendimento em seus negócios, não gastavam em itens para consumo próprio, como faziam os homens, mas para prover melhor atenção aos filhos e à qualidade de vida do grupo. Ou seja, o impacto dos empréstimos é muito mais positivo e se encaixa melhor no espírito do que pretendemos fazer. Assim elas chegaram a 97% do total.
O seu projeto opera na contramão da economia real. Nesta, ocorre uma concentração de riqueza no planeta, que coincide com um crescimento contínuo da população mundial e com tecnologias novas que eliminam empregos. O sr. tem esperança de que a pobreza vá diminuir?
Criamos, em nossas sociedades, uma máquina econômica estranha, eficaz em fazer pessoas ricas ainda mais ricas, e sem muito esforço. Então toda a riqueza vai se acumulando no topo. Temos 99% da riqueza nas mãos de apenas 1% da população. Isso não quer dizer que pessoas ricas sejam más pessoas. É a máquina econômica que faz isso acontecer. Podemos então culpar a máquina, não seus beneficiários. Concebemos essa máquina da forma errada, temos de admitir isso. Se entendermos que é preciso promover uma reengenharia para mexer nesses 99%, creio que isso pode ser feito.
Uma tarefa ambiciosa, não?
Mas o processo de concentração de riqueza é uma bomba-relógio que vai explodir de país a país, até mesmo globalmente. Para nos salvarmos disso é preciso redesenhar a máquina. E o conceito de negócio social é parte desse redesenho. Ao invés de termos apenas um tipo de negócios, precisamos ter dois. Os negócios convencionais, que fazem dinheiro, e os que não pagam dividendo e se propõem resolver os problemas sociais. Quanto mais rápido conseguirmos expandir os negócios sociais, mais cedo conseguimos desativar a bomba relógio da explosão social.
O sr. foi apontado pela Wharton School of Business como uma das pessoas mais influentes nos últimos 25 anos. Que avaliação faz dessa influência?
Tenho dito que a estrutura econômica está desenhada de forma incorreta e vivo gritando para se consertar isso. Ofereço soluções que não pretendem desfazer nada, apenas abrir novas possibilidades. Convido indivíduos e corporações a abrir negócios sociais, à parte do trabalho em negócios para fazer dinheiro. Lembro que fazer dinheiro traz felicidade, mas fazer outras pessoas felizes é uma superfelicidade. Se todos os negócios se tornarem sociais, não haverá concentração de riqueza.
Fonte: O Estado de S Paulo